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Pais e Filhos (e especialistas)

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O sentimento de impotência dos pais e a posição dos especialistas da saúde acerca das relações familiares.

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Pais e Filhos é o nome de uma das músicas mais profundas e dramáticas da Legião Urbana. Trata-se de uma música cuja letra abre a possibilidade de várias interpretações em cada um de seus versos, mas seu tema central permeia a relação entre pais e filhos, a importância dos sentimentos presentes nessa relação e os ruídos na comunicação que fazem parte dela. Traz ainda um desfecho trágico para a história contada, ao qual prefiro deixar para pensar num outro momento, mas faz lembrar o quanto gostaríamos que a história de vida de nossos filhos fosse sempre a mais segura, saudável e feliz possível. Muitos são os aspectos levantados a partir da música, mas vamos focar na última estrofe, que fala dos problemas de comunicação.

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“Você me diz que seus pais não entendem
Mas você não entende seus pais.
Você culpa seus pais por tudo
Isso é absurdo
São crianças como você.
O que você vai ser
Quando você crescer”

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A mensagem dirigida pela música nessa parte se revela como uma orientação para os filhos. Sugere que sejam menos críticos com os pais, pois estes são crianças. Em outras palavras, faz lembrar que os pais, para além dessa condição, não são infalíveis. São pessoas, com suas restrições e faltas. Ainda que ocupem um lugar de liderança na relação com os filhos, a música coloca que a condição de mãe e pai é marcada por uma falta de algo. É interessante pensar isso, pois na relação entre pais e filhos espera-se que os primeiros sejam sempre os que suprem a falta dos segundos, com proteção, afeto e meios de subsistência. Entretanto, a letra traz que os pais também são seres de falta, que se sentem muitas vezes impotentes, sem saber o que fazer. Atualmente esse é um sentimento muito presente para aqueles que estabelecem uma relação menos ditatorial com os filhos. Falta de um gesto de carinho no momento certo, falta de coragem para tomar uma posição mais firme, falta de tempo, falta de certeza quanto às atitudes. Quem nunca se sentiu impotente frente à falta de convicção em algo?

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Se tomarmos como verdadeira essa suposição, de que a relação entre pais e filhos é marcada pela necessidade de proteção e amparo, e que o filho é o amparado e os pais os que amparam, precisamos refletir sobre como fluímos de uma posição para outra. Ou seja, a busca por segurança e amparo deixa de ser característica apenas dos filhos, e, metaforicamente falando, como coloca a música, todos somos crianças. Todos nós buscamos amparo para o que nos falta, inclusive pais.

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O que se percebe em consequência disso é que, muitas vezes, pais sentem-se ansiosos com uma condição socialmente não aceita, que é a de não saberem o que fazer em relação aos seus filhos. Existe uma cobrança implícita na condição de mãe e pai que nos diz que devemos saber cuidar e educar nossos filhos, e é com preocupação que, muitas vezes, se assume em consultório não saber o que fazer. Nesse caso, quem poderia compreender os filhos melhor do que os pais? Ou melhor, quem sabe mais como cuidar dos filhos? Seriam os especialistas? Espero poder ampliar a discussão a respeito desse questionamento, enfocando a forma como os especialistas poderiam colaborar para o cuidado não apenas das crianças, mas também dos pais.

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O lugar do cuidado em nossa sociedade

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Se hoje é cada vez mais comum encontrar pais que se perguntam como podem ou poderiam ter feito com relação aos cuidados e educação dos filhos, podemos dizer que nem sempre foi assim. Pensar formas de sermos pais mais abertos ao diálogo e aprendizagem desse papel, bem como sermos menos ditatoriais com os filhos, é algo recente na história da humanidade. O cuidado com a criança no século XX passou, cada vez mais, a ser um tema estudado e desenvolvido. Sabemos que na Idade Média, por exemplo, crianças eram vistas como uma espécie de mini adultos. As crianças já com certa idade nem mesmo eram entendidas como um ser humano que passa por uma fase que demanda cuidados específicos, fato demonstrado por antropólogos e historiadores. Já no século XIX, tinham sua condição diferenciada reconhecida, mas a forma como se dava o cuidado delas era elaborada a partir do saber popular, difundido entre as pessoas próximas e familiares. Somente a partir do século XX passou-se a atentar definitivamente para os benefícios do conhecimento científico no cuidado físico, moral e afetivo de crianças. Esse período é um marco no cuidado de crianças, pois o trato dado aos filhos pelos pais deixava de ser uma questão unicamente privada, e tornava-se um assunto de interesse público e controlado pelo Estado.

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No final da década de 60 foi lançada a famosa revista “Pais & Filhos”, que se propunha a escrever artigos abordando as dúvidas que pais tinham acerca do seu papel. Era um apanhado de informações elaboradas a partir do conhecimento científico de profissionais da saúde e educação a respeito, sobretudo, dos cuidados com os filhos. Tratava-se de uma proposta de escrita que não era nova, uma vez que, no Brasil, artigos e livros a respeito do cuidado com os filhos já existiam desde o início do século XX, escritos por médicos puericultores. Entretanto, pela primeira vez na história, essa proposta de escrita se apresentava num período em que o respeito pelo conhecimento científico se tornou efetivamente arraigado nas mães e pais. Enquanto que os médicos puericultores do início do século XX escreviam para pais que precisavam acreditar que o conhecimento científico era mais efetivo que o saber popular, os pais leitores da revista Pais & Filhos da década de 60 e atualmente já reconhecem a importância do conhecimento científico. Dessa forma, buscam nele o amparo para suas dúvidas em relação à saúde física, afetiva e moral dos filhos.

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Independentemente de quão importante o saber popular foi ou continua sendo, e quanto o conhecimento científico, através dos especialistas, foi ou não eficaz em substituí-lo, foram observadas a partir dessas mudanças no século XX duas consequências: uma positiva, outra negativa. Como positiva tivemos o avanço no cuidado da saúde das crianças, cuja hegemonia do conhecimento científico propiciou. Pais puderam recorrer aos especialistas para saber o que a ciência pôde construir com seu corpo de conhecimentos acerca do cuidado com seus filhos. De negativo vimos, cada vez mais, ficar acentuada a condição de impotência dos pais, pois nas situações em que antes eles se sentiriam os mais aptos a cuidar dos filhos, hoje o sentimento de impotência implica que busquem os especialistas, que muitas vezes são convidados a decidir pelos pais o destino das crianças.

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Então, vivemos um momento em que, felizmente, a ciência e os especialistas puderam fazer avançar o conhecimento acerca dos cuidados com a saúde das crianças em determinados aspectos. A partir disso, pais podem hoje por em prática uma série de procedimentos que colaboram para que seus filhos estejam menos sujeitos a infecções, por exemplo. No entanto, isso não garantiu que pais se sentissem mais seguros a respeito de como abordar certos aspectos afetivos e do comportamento. Muitas vezes os especialistas são requeridos para ajudá-los nesses momentos de insegurança e impotência, seja através de artigos ou consultas.

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O especialista na superação da impotência dos pais

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Os profissionais de saúde têm hoje uma gama de informações prontas que podem ser passadas aos pais, e, desse modo, podem ajudá-los a cuidar dos filhos. Mas essa não a única forma de ajudá-los. Os psicólogos têm atualmente duas formas de abordar tal situação. Uma através do aconselhamento, uma prática mais direcionadora para tratar a situação problema e que conta com um conhecimento prévio do profissional. Esta é uma prática mais pontual, e tende a resolver um aspecto isolado e normalmente mais simples do comportamento das crianças e dos pais. Outra é a terapia psicológica propriamente dita, que procura pensar como se dá a relação dos pais e das crianças entre si e com o mundo, e aprofunda aspectos afetivos e cognitivos deles. Costuma ser utilizada nos momentos em que o conhecimento prévio do psicólogo não se aplica às questões apresentadas.

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Uma situação que ilustra bem essa busca pelo especialista em uma situação de terapia é a de uma paciente que, corajosamente, aceitou gravar uma consulta realizada com o psicólogo americano Carl Rogers, na década de 60. No vídeo vemos Glória, uma mãe divorciada que não sabe se deve contar para a filha de nove anos que se relaciona com homens solteiros, sem manter um relacionamento fixo com eles. Dentre as compreensões que ela traz está a de que seus desejos sexuais, que a levam manter relacionamentos sem compromisso, são errados, mas que, ainda assim, ela os tem e não consegue ou não quer ignorá-los. Ao mesmo tempo, ela gostaria de ser sincera com a filha, que tem ou provavelmente terá em algum momento questionamentos a respeito da vida afetiva e sexual da mãe. Ela quer ser “imperfeita”, conforme ela considera, por possuir tais desejos afetivo-sexuais, mas também quer ser sincera e ter a aprovação da filha ao revelar que se relaciona com homens.

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Ela entende que ser sincera pode ser positivo por dois motivos. Primeiramente porque acredita que a aceitação da filha em relação a quem ela realmente é pode ajudá-la a aceitar seus desejos, que até então considera errados. E, em segundo lugar, pensa que, talvez, a filha saber que ela é imperfeita pode dar à criança uma nova, melhor e mais realista perspectiva de vida e compreensão da sexualidade. Por outro lado, por não saber como a filha pode reagir ao ser sincera com ela, surge a dúvida que direciona ao terapeuta: 

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Ela deve ser sincera com a filha a respeito de sua vida pessoal? Demonstrar quem realmente ela é, no intuito de buscar aceitação da filha, não pode acabar causando algum trauma na criança?

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É um diálogo muito interessante, principalmente porque vemos Carl Rogers, de uma forma muito sensível, evitando ser aquele que detém a resposta unívoca para a questão apresentada, mesmo estando na posição de especialista. E, ainda assim, ele não deixa Glória sozinha em suas questões. Ela passa parte do encontro sem saber o que fazer quanto ao risco de assustar a filha contando a verdade, bem como incomodada por permanecer tendo que mentir para ela. Rogers sempre a acompanha na angústia de não saber o que fazer, até que, surpreendentemente, a conversa evolui para que Glória possa colocar, de forma mais clara para Rogers e para si mesma, os meandros dessa situação.

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O psicólogo não responde a pergunta de Glória, mas a conversa ganha um novo olhar, principalmente quando Glória expressa em palavras que gostaria que um especialista dissesse para ela que deve contar para a filha sobre sua vida pessoal. É como se ela quisesse o aval de um especialista para fazer algo que, desde sempre, considerou o melhor a ser feito. Assim, ela poderia se sentir aliviada por ter finalmente sido sincera com a filha, mas sem correr o risco de se sentir responsável e culpada pelas possíveis consequências disso. Ela gostaria que, com o aval do especialista, pudesse fazer o que acha certo, que é contar, uma vez que não contar a verdade implica em viver com a consciência pesada, bem como passar uma perspectiva irreal da vida para a filha. Entretanto, fazer o certo pode levar a consequências que ela desconhece.

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Chama a atenção que, ainda que tenha chegado a uma reflexão que demonstra um avanço na compreensão do seu momento atual, no sentido de viver tal situação de forma mais esclarecedora, Glória não deixa de apresentar uma expressão de angústia com relação ao que lhe preocupa. Ela percebe de uma forma mais realista a situação que se apresenta, e sabe que, ainda que alguém lhe diga o que deve fazer, são suas ações que irão afetar o que lhe acontecerá e a sua filha dali para frente.

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O que se compreende a partir disso? Contando ou não para a filha, viver é arriscado. Assumir a responsabilidade pelas suas atitudes como mãe e pai é correr riscos. Criar um filho, vê-lo nascer e crescer implica em riscos. Nesse sentido, arriscar é parte de nossa vida, e a confiança para tal é essencial. Confiança diz respeito a termos disposição para agirmos segundo nossos valores, pensamentos e sentimentos. Atentar para eles é extremamente importante. O que Rogers procurou proporcionar para Glória não foi retirar dela a angústia de arriscar, mas colaborar para que essa angústia não se torne um obstáculo para assumir a sua vida a partir de suas referências pessoais. Em outras palavras, a mudança buscada não era tornar Glória uma pessoa livre de riscos, pois isso seria impossível, mas ajudá-la a enfrentá-los com mais confiança, na medida em que se fizesse valer de seus referenciais pessoais.

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Aparentemente ela estava mais inclinada para contar à filha a verdade, mas talvez não tenha feito isso. O importante é que ela poderia escolher não contar, por realmente acreditar na importância do segredo, bem como escolher contar, por realmente acreditar na importância da sinceridade. Não fica claro o desfecho da situação de Glória a partir da entrevista, mas ela pôde compreender como é difícil cuidar de sua filha, e assumir os riscos envolvidos nesse cuidado. A partir dali, contando ou não para filha, Glória estava mais perto de se sentir uma mãe menos falsa não apenas para criança, mas principalmente para si mesma.

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Por essa perspectiva é compreensível que pais sintam-se orgulhosos somente por ver os filhos que criaram crescerem, trabalharem e serem felizes. Vê-los bem traz a convicção de que a postura como pais foi bem sucedida. Mas quão bom seria se essa convicção fizesse parte do nosso cotidiano, e não apenas de nossas conclusões? 

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Tendo isso em vista, os especialistas – psicólogos, pedagogos, médicos, fonoaudiólogos, etc. -, a quem confiamos buscar ajuda na hora de tomarmos decisões a respeito da criação dos filhos, não parecem servir apenas ao propósito de retirar de nós a necessidade de arriscar, dando respostas prontas sobre como cuidá-los. Eles também nos ajudam, seja com informações ou reflexões, a arriscar com mais convicção. E aquele sentimento de impotência, ao qual falamos antes, está relacionado a uma carência de convicção em nossas atitudes. Dessa forma, sentir-se como pais potentes, capazes de cuidar de nossos filhos, não é somente fazer o que o especialista orienta, mas também fazer do especialista um facilitador para que consiga agir da forma que faz mais sentido para cada um.

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Carlos Vinícius R. Almada

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